em capítulos curtos, estilo folhetim, onde é contada a história de uma mulher de cinquenta anos, à beira de um ataque de nervos, obcecada com a ideia de matar um homem que designa de "caubói".
A prosa é muito intensa, sempre em ritmo acelerado, carregada de um tom de fúria e raiva, sem contemplações na utilização de palavrões e com a descrição de cenas de sexo explícito que surgem sem pudor.
Entre desabafos e confidências, emoções levadas ao extremo e passando por estados de delírio, sempre num clima de constante inquietação, o livro é repleto de um vocabulário riquíssimo e adornado por diversas referências literárias.
Apesar de não ser o estilo de livro que mais me enche as medidas tem excertos de prosa verdadeiramente geniais, daqueles que me enchem mesmo as medidas, como este:
Maio maduro Maio, quem te pintou
quem te quebrou o encanto, nunca te amou
raiava o sol lá no sul
ti ri tu ri tu ri tu ru
ti ri tu ri tu ri tu ru
e uma falua vinha lá de Istambul
Zeca Afonso é como Carlos Paredes, quando ouço sei que sou portuguesa, mas não posso pensar nisso agora, caralho, ainda me dá para chorar.
Sempre depois da sesta chamando as flores
era o dia da festa
Maio de amores
era o dia de cantar
ti ri tu ri tu ri tu ru
ti ri tu ri tu ri tu ru
e uma falua andava ao longe a varar
Além de se ouvir Zeca ao longe, o melhor do meu quintal é a sombra da nespereira atravessada pelo sol. A frente da casa está voltada para o Norte e para a manhã o que quer dizer que o quintal se volta para o Sul e para a tarde. Portanto, a sombra dura toda a descida do sol, que em Maio está perto de ser a mais longa, horas de uma filigrana em movimento, projectada na cal e no anil que os árabes deixaram cá. Evidente, o meu Lada mal passa na rua, a rua tem calhaus medievais, uma gaja não pode usar saltos altos, e, em certos sábados, o mantra dos morcegos é interrompido por covers dos Xutos e Pontapés.
Há um invulgar número de morcegos na cidade, o que a protege dos mosquitos e lhe dá um sono gótico. De resto, as noites são tão quietas quanto os dias, o tudo-como-sempre-foi que atrai os de fora e afasta os de dentro, porque uns vêm para ficar quietos e outros partem para arranjar emprego. A rarefacção é uma história alentejana, mas ainda há quem ligue o passado ao presente pelas oliveiras, como na antiga promessa do Mediterrâneo, quando Oriente e Ocidente aqui confluíam num mundo só. E o Alentejo continua a ser Mediterrâneo, a quinhentos quilómetros de Gibraltar. O pior do meu quintal é que justamente não dá para ver isso, porque ao fim de seis passos acaba, em volta tem um muro branco, por cima só uma nesga de céu entre as copas. Está sempre voltado para dentro, mesmo agora, de porta aberta. A mangueira com que rego tudo e a mim mesma é o mais próximo de respirar. Então, todos os dias subo ao Castelo a pé, para que os olhos corram como um cão que estava preso, até onde a terra cai no outro lado.
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